quinta-feira, 17 de março de 2011

O Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Paraná vem externar sua posição em relação ao "Toqúe de Recolher


Posição oficial:
CONSIDERANDO as notícias veiculadas recentemente na mídia nacional, dando conta da expedição, em diversos municípios, de leis municipais e portarias judiciais estabelecendo "toques de recolher" para crianças e adolescentes.

CONSIDERANDO que o direito à liberdade de locomoção, além de se constituir num direito fundamental e natural, se constitui numa garantia individual contra o arbítrio estatal a todos assegurada de maneira expressa pelo art. 5º, caput e inciso XV, da Constituição Federal;

CONSIDERANDO que os direitos e garantias individuais, por força do disposto no art. 60, §4º, da Constituição Federal, não são passíveis de supressão sequer por emenda constitucional, muito menos por normas infraconstitucionais de qualquer espécie;
CONSIDERANDO que, por serem titulares de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (cf. art. 3º, da Lei nº 8.069/90), crianças e adolescentes também têm direito à liberdade, que lhes é expressamente assegurado pelos arts. 4º, caput, 15 e 16, da Lei nº 8.069/90, incumbindo a todos respeitar e fazer respeitar com a mais absoluta prioridade;

CONSIDERANDO que, como reflexo do disposto no art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal, crianças e adolescentes somente podem ser privados de liberdade quando em flagrante de ato infracional ou mediante ordem escrita, fundamentada, individualizada e legal de autoridade judiciária competente (cf. art. 106, da Lei nº 8.069/90), sendo considerado crime sua privação de liberdade fora das hipóteses legais (cf. art. 130, da Lei nº 8.069/90);

CONSIDERANDO que o cerceamento indiscriminado à liberdade de crianças e adolescentes, fora das hipóteses permitidas pelo art. 106, da Lei nº 8.069/90, além de atentatório aos dispositivos constitucionais já citados, fere o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e o disposto nos arts. 2º, nº 2; 15; 16 e 37, letra "b", da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, sendo absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito no qual vivemos;

CONSIDERANDO que compete acima de tudo aos pais ou responsável, e não à autoridade judiciária, educar e estabelecer limites às crianças e adolescentes, o que compreende o controle do horário de permanência fora de casa, bem como o controle sobre as companhias e locais que aqueles freqüentam;
CONSIDERANDO que o combate à violência envolvendo crianças e adolescentes, seja na condição de autores ou vítimas, pressupõe a tomada de medidas muito mais abrangentes e eficazes que a singela e pífia decretação de "toques de recolher", compreendendo desde a orientação dos pais e responsáveis, no sentido do exercício efetivo e comedido de sua autoridade em relação a seus filhos e pupilos, até a rigorosa fiscalização dos locais onde são comercializadas bebidas alcoólicas;

CONSIDERANDO que o combate à violência demanda, acima de tudo, o enfrentamento de suas causas, cabendo ao Poder Público elaborar e implementar políticas públicas destinadas à prevenção e tratamento especializado para usuários de substâncias entorpecentes (cf. art. 227, §3º, inciso VII, da Constituição Federal), combate à evasão escolar e inserção/reinserção de crianças e adolescentes no Sistema de Ensino (cf. art. 206, inciso I e 208, da Constituição Federal), orientação, apoio e promoção social das famílias (cf. art. 226, caput e §8º, da Constituição Federal), que por sua vez demanda o aporte de recursos orçamentários dos mais diversos setores da administração, com a prioridade absoluta preconizada pelo art. 227, caput, da Constituição Federal e art. 4º, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.069/90;

CONSIDERANDO, enfim, que cabe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como é o caso do direito à liberdade de crianças e adolescentes,
O Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná vem externar sua posição em relação aos mencionados "Toques de Recolher" nos seguintes termos:
I - O direito à liberdade de locomoção, assegurado a todas as crianças e adolescentes, assim como a todos os demais cidadãos, pelo art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal, se constitui num direito natural que não admite cerceamento por qualquer norma infraconstitucional, o que compreende desde as leis federais, estaduais e municipais até uma singela portaria judicial;
II - Eventual tentativa de supressão ao direito à liberdade de crianças e adolescentes importa também em frontal violação às disposições contidas nos arts. 3º, 4º, caput, 5º, 15, 16, inciso I e 18, da Lei nº 8.069/90;
III - A competência normativa da Justiça da Infância e da Juventude está restrita às hipóteses taxativamente relacionadas no art. 149, da Lei nº 8.069/90, que de maneira expressa veda determinações de caráter geral (cf. parágrafo segundo do citado dispositivo), posto que não cabe à autoridade judiciária "legislar" e, muito menos, decidir de forma contrária à lei e à Constituição Federal;

IV - Qualquer portaria ou mesmo lei, seja de nível Federal, Estadual ou Municipal, que tenha a pretensão de suprimir o direito de ir e vir de crianças e adolescentes padece de inconstitucionalidade manifesta, devendo ser considerada ato normativo inexistente, posto que contrário a uma garantia constitucional instituída a todos pela Lei Maior que não pode ser suprimida sequer por meio de emenda constitucional;
V - Eventual apreensão de crianças e adolescentes decorrentes dos referidos "toques de recolher" importa, em tese, na prática do crime tipificado no art. 230, da Lei nº 8.069/90, posto que a privação de liberdade de criança ou adolescente somente será legal quando configurado flagrante de ato infracional ou quando da existência de ordem legal, expressa, fundamentada e individualizada de autoridade judiciária competente (o que não é o caso, logicamente, de uma portaria genérica e ilegal, expedida fora do âmbito da competência normativa da Justiça da Infância e da Juventude ou de uma lei manifestamente inconstitucional);
VI - São os pais ou o responsável legal (e não o Juiz), que usando de sua autoridade, devem estabelecer, através do diálogo, os limites para permanência de seus filhos e pupilos nas ruas, podendo para tanto receber a orientação e, se necessário, o apoio estatal, nos moldes do previsto no art. 129, inciso IV, da Lei nº 8.069/90, o que por sinal faz parte do dever elementar de educação, inerente ao poder familiar, tutela ou guarda;
V - A instituição de "toques de recolher" para crianças e adolescentes, além de se tratar de uma prática ilegal e inconstitucional, não garante maior harmonia na família, não se mostra uma medida eficaz para coibir o consumo de álcool e outras substâncias entorpecentes e, muito menos, contribuem para diminuição da violência entre jovens, apenas fazendo com que tais práticas se transfiram de horário e local, sem qualquer resultado prático;
VI - Cabe ao Poder Público elaborar e implementar políticas públicas sérias e consistentes destinadas à prevenção e ao combate à violência em todas as faixas etárias, não sendo admissível qualquer prática discriminatória em relação a crianças e adolescentes, sob pena de afronta ao disposto no art. 5º, da Lei nº 8.069/90 e art. 227, caput, da Constituição Federal;
VII - Crianças e adolescentes que perambulam pelas ruas durante a noite, consumindo bebidas alcoólicas e drogas, na sua grande maioria estão fora do sistema de ensino, devem ser consideradas vítimas da omissão da família, da sociedade e do Poder Público, que na forma da lei e da Constituição Federal deveriam se unir na descoberta de soluções concretas e efetivas para o problema, tendo como preocupação a promoção e defesa de seus direitos, e não na busca de alternativas para sua pura e simples repressão, como é o caso da instituição dos referidos "toques de recolher", cujo efeito é meramente "pirotécnico", posto que não enfrentam as verdadeiras causas da violência;
VIII - A supressão de direitos individuais, a pretexto da proteção infanto-juvenil, se constitui num retrocesso à sistemática vigente sob a égide do revogado "Código de Menores", que tratava crianças e adolescentes como meros "objetos" de intervenção estatal e não como sujeitos de direitos, tal qual são hoje considerados pela Lei nº 8.069/90 e pela Constituição Federal;
IX - Cabe às autoridades públicas, assim como à família e à sociedade, através do diálogo, da ação em regime de colaboração e do investimento em políticas públicas, buscar formas mais adequadas e eficientes para proteção integral de todos os direitos infanto-juvenis, tal qual preconizado pela Lei nº 8.069/90 e pelo art.227, da Constituição Federal, voltando a repressão estatal contra aqueles que, por ação ou omissão, violam tais direitos, respeitando as normas e princípios, inclusive de Direito Internacional, aplicáveis em matéria de defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes, com ênfase para a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989.
Este Centro de Apoio destaca, por fim, que possui em sua página da internet farto material destinado a fazer com que família, sociedade e Estado (lato sensu) cumpram de maneira efetiva o papel que lhes é reservado no sentido da mencionada proteção integral de crianças e adolescentes, sem que para tanto tenham de usar de expedientes ilegais, inconstitucionais e ineficazes, como os "toques de recolher", que há muito já deveriam ter sido relegados a um passado de arbítrio e opressão que não mais é compatível com o Estado Democrático de Direito em que vivemos.
Curitiba/PR, junho de 2009.

MÁRCIO TEIXEIRA DOS SANTOSPromotor de Justiça
MURILLO JOSÉ DIGIÁCOMOPromotor de Justiça

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